terça-feira, 16 de abril de 2024

Sobre o filme «O Mal Não Está Aqui» de Ryusuke Hamaguchi, 2023


 

















Existe um filme que, para mim, será sempre a referência para o filme maior de pendor “ecologista” (não sabendo eu lá muito bem se podemos aplicar esse adjecivo a um filme). Uma obra-prima que revejo sempre que passa num ecrã grande, entre a comoção estética e a erudição poética. «Dersu Uzala – A Águia da Estepe» de Akira Kurosawa (1974).

Acho que «O Mal Não Está Aqui» não ignora aquela obra e até me parece que, desde as primeiras longas sequências florestais, usa um método contemplativo semelhante. Um modo não tanto de assistir directamemte o ecossistema, antes de colocar o espectador perante o olhar que recai sobre o ecossistema. Aqui, o olhar de Dersu Uzala é substituído pelo do meio-misantropo, meio-façanhudo Takumi (Hitoshi Omika), viúvo que vive na floresta com a sua filha Hana (Ryo Nishikawa). Os dois personagens não se perdem na floresta gelada, conhecem as árvores pelo nome, as aves pelas penas, a vida dos corços pelos bebedouros onde a água líquida rompe o gelo.

A vida na comunidade de Mizubiki é tranquila até que uma empresa de Tóquio apresenta apressadamente a construção de um empreendimento de glamping (campismo chique), aproveitando os subsídios disponibilizados na época do COVID 19. A população reunida numa sessão de esclarecimento promovida pela empresa detecta uma série de erros graves no planeamento que porá em risco o equilíbrio ambiental na região.

A solução parece estar no aliciar de Takumi para consultor do empreendimento, mas o mal disposto e profundo conhecedor da natureza na região não torna tarefa fácil… Até que pequena Hanna desaparece.

É um filme bonito, a abarrotar de boas intensões filosóficas e estéticas, onde a banda sonora (a musical e a outra) é essencial para que o espectador compreenda aquele mundo, mas onde a ingenuidade do confronto das duas sociedades é apresentada quase como um folheto explicativo do que é o ser humano perante a agressividade da sociedade e da própria natureza.

Enfim, acho que tenho de ir ver de novo o «Dersu Uzala» do Kurosawa!


jef, abril 2024

«O Mal Não Está Aqui» (Aku wa sonzai shinai / Evil Does Not Exist) de Ryusuke Hamaguchi. Com Hitoshi Omika, Ryo Nishikawa, Ryuji Kosaka, Ayaka Shibutani, Hazuki Kikuchi, Hiroyuki Miura, Yoshinori Miyata, Taijiro Tamura, Yuto Torii. Argumento: Ryusuke Hamaguchi, Eiko Ishibashi. Produção: Satoshi Takada. Fotografia: Yoshio Kitagawa. Música: Eiko Ishibashi. Japão, 2023, Cores, 106 min.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Sobre o filme «O Americano Tranquilo» de Joseph L. Mankiewicz, 2023



 












O que impressiona em «O Americano Tranquilo», filmado entre a romana Cinecittà e a vietnamita Saigão, nessa enorme sequência de cenas em flashback é a sua característica poética de nunca se definir perante o espectador. Em longas tiradas literárias introspectivas, ora depressivas ora inquisitoriais, o espectador fica perante diversas questões por resolver neste crime a céu aberto, e nocturno. 

Devemos seguir o fio condutor trazido pelo velho oficial diplomata britânico Thomas Fowler (Michael Redgrave), que se reformará em breve do seu posto naquela cidade da Indochina em ebulição, casado na Europa mas com trato doméstico com a jovem Phuong (Giorgia Moll); ou aquele outro móbil, o do jovem americano, empreendedor e com vontade de se estabelecer comercialmente no local, e que acaba perdidamente apaixonado por Phuong? Ou devemos antes seguir a pista que vai sendo desvendada pelo chefe da polícia francês, o inspector Vigot (Claude Dauphin)?

Será apenas cínico ou decadente o desprendimento do inglês e assim tão ingénuo e voluntarioso o entusiasmo do americano? Qual a relação afinal entre Dominguez (Fred Sadoff) e o obscuro Mr. Heng (Richard Loo)?

Qual a importância da verdadeira tradução explosiva para a palavra “plastic” num mundo onde a América pretendia entrar a matar, a França colonial fraquejava na manutenção da ordem e os independentistas comunistas não davam mostras de desistência?

A história de um triângulo amoroso tomada pela poética das imagens e pelo rumor interior, cada vez mais acirrado, da voz off e pela chegada tarde demais de uma carta esclarecedora.

Um filme que transforma a dúvida política e o poder pelo amor num acto estético.


jef, abril 2024

«O Americano Tranquilo» (The Quiet American) de Joseph L. Mankiewicz. Com Michael Redgrave, Claude Dauphin, Audie Murphy, Giorgia Moll, Bruce Cabot, Fred Sadoff, Kerima, Richard Loo, Peter Trent, Georges Bréhat, Cliton Anderson, Yoko Tani, Nguyen Long, C. Long Cuong, Tu An. Argumento: Joseph L. Mankiewicz e Edward Lansdale baseado no romance de Graham Greene. Produção: Joseph L. Mankiewicz, Vinh Noan, Michal Waszynski. Fotografia: Robert Krasker. Música: Mario Nascimbene. EUA, 1958, Preto e Branco, 122 min.

 

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Sobre a peça «A Senhora de Dubuque» de Edward Albee, 2024

 




 
























Será toda a tragédia risível?

Será possível sabermos quem o outro representa com apenas 20 perguntas? (Quem somos nós?) 

O serão em casa da Jo e do Sam até está a correr bastante bem, animado com os jogos de sociedade e bebida em abundância. Os três casais reúnem-se com frequência para se divertir e para esconder o que cada um é ou o que representa para o outro. Uma espécie de jogo de espelhos turvos, entre a mentira piedosa, a hipocrisia e o tédio. Mas são amigos e devem cumprir a etiqueta – Jo está doente. E a doença (e a bebida) revela-se como ignição da verdade. Como superar a crise instalada para além das lágrimas e da falsidade? Sam, o marido, é o centro da questão. Como ser ele próprio (não se conhecendo) mas tendo de lidar ao mesmo tempo, e acima de tudo, com um fim anunciado.

Afinal, Sam é a América das guerras, do capitalismo, do racismo e o grupo de amigos, uma sociedade que não se revê e se agride em busca de uma tranquilidade apodrecida.

A questão tem de ser resolvida sem destruir completamente o relvado da casa do casal, sem acabar com a respectiva garrafeira.

A resposta está, uma vez mais, no teatro e nesse modo grego de fazer acontecer o inexplicável. Chega pelo fim da noite, a Senhora de Dubuque com o seu pajem, Oscar. Enquanto a Senhora, imperial, arruma a loiça, Oscar explica que é negro porque a sua pele é negra. Tudo muito simples. Para bom entendedor… Eles não precisam de dizer quem são pois os espectadores possuem o dom da imaginação e neles podem ver o que bem entenderem. A Senhora diz que é a mãe de Jo mas Sam não reconhece qualquer das características da sua sogra. Nem sequer o cabelo cor-de-rosa.

A senhora de Dubuque é uma espécie de Deus ex machina mas ao contrário, aquela que não vem tirar o herói do cadafalso mas, antes, coloca-lo perante os pontos nos is sociais e questioná-lo quem é ele ou quem foi, agora que a morte se aproxima. Quem não precisará de um qualquer cuidado paliativo ao ver-se a braços com a morte iminente da sociedade? Quem é que ainda recorda Karl Marx e Friederich Engels?

Poder-se-ia dizer que a peça é datada num tempo longínquo, americano, caso não estivéssemos todos nós, hoje em dia, agora mesmo, frente-a-frente com a morte iminente da liberdade, da democracia e de um modo inteligente de buscar uma igualdade e uma fraternidade que julgávamos estar assegurada.

(Afinal, quem tem medo de Virginia Wolf? Mas Edward Albee não convidou George e Martha para aquele serão.)


jef, janeiro 2024

«A Senhora de Dubuque» de Edward Albee. Tradução: João Paulo Esteves da Silva. Encenação: Álvaro Correia. Com Fernando Luís (Sam), Manuela Couto (Jo), Renato Godinho (Fred), Benedita Pereira (Carol), Álvaro Correia (Edgar), Sandra Faleiro (Lucinda), Alberto Magassela (Oscar) e Cucha Carvalheiro (Senhora de Dubuque). Cenografia e Figurinos: Nuno Carinhas. Desenho de Luz: Manuel Abrantes. Som: Rui Santos. Produção: Teatro da Trindade INATEL / Culturproject. 110 min (aproximadamente)

 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Sobre o livro «O Segredo do Bosque Velho» de Dino Buzzati, Cavalo de Ferro, 2018 (1935). Tradução de Margarida Periquito.



 







Este será o romance que todos os silvicultores, trabalhadores da floresta e amantes da natureza deviam ser obrigados a ler.

Uma enorme fábula que termina com a imagem de algum viajante sobre o mar de névoa. Para o ilustrar, Caspar David Friedrich teria de o retratar de costas como uma criança de doze anos que, finda a infância, acaba naquele instante de poder escutar as vozes do vento Matteo, das corujas e do génio da árvore, Bernardi, para se ficar apenas pela voz do seu próprio silêncio. Romantismo puro.

Ora, após a morte do tio-avô Antonio Morro, a criança ligeiramente esquálida e aparentemente sem cariz, Benvenuto Procolo passa a estar sob custódia de um outro tio, o sisudo e odiado coronel Sebastiano Procolo. Uma figura que parece saída das sinistras fábulas dos irmãos Grimm. Enquanto o pequeno Benvenuto recebe por herança a maior parte produtiva da propriedade florestal, o invejoso tio Sebastiano apenas fica com um pequeno bosque de estrutura ajardinada, relíquia da floresta primordial, onde não é possível tocar por motivos obscuros e ancestrais. Nada aqui revelo que não esteja contido nos primeiros parágrafos do livro, bem entendido.

Contudo, o silvicultor agrimensor e organizador de rechegas florestais tem de ter em conta que a estrutura dendrológica tem a sua própria cadência, o seu próprio tempo, a sua própria linguagem. Nesse campo, o profissional tem de ter muito em conta a voz das gralhas e outros pássaros, das raposas e roedores, dos ventos. Deve ter tempo para ouvir o “Boletim de Notícias”, não ser sobranceiro ao equilíbrio ecológico e nunca desprezar a possibilidade das pragas entomológicas que, agora e ali, podem não possuir o contraditório dos seus predadores naturais.

E se um rato coxo se entretiver a roer a trave superior da cama para que lhe caia em cima e o mate, não se chateie, a Natureza sabe sempre o que faz.

Uma fábula, séria e risível em simultâneo, escrita em 40 pequenos contos encadeados sobre a imperiosa alma da natureza florestal, que tanto pode invocar o romantismo de Caspar David Friedrich como aquele outro, helénico e temporão, o das odes à mãe-natureza de Friedrich Hölderlin.

Um livro infantil, divertido, essencial.


jef, abril 2024

sábado, 6 de abril de 2024

Sobre o filme «O Acossado» de Jean-Luc Godard, 1960


























Reconheço que «O Acossado» é daqueles filmes infinitos que, de todas as vezes que o vemos, apresenta novas qualidades face ao dia que estamos a viver, diferentes pormenores que tocam a nossa atenção naquele momento, sabendo nós genuinamente que, de uma visualização para outra, já nos fomos esquecendo de outros tantos pormenores e qualidades.

Desta vez, fico com a grata sensação de que o filme é uma comédia rápida, velocíssima, sobre a inocência juvenil, quase inconsciência infantil, ou o início do erotismo que é obrigado a terminar sob os abstractos ferros da austeridade social, da inflexível autoridade colectiva. Não será por acaso que um dos planos mais tangencialmente demorados é sobre o paternal retrato do actor mais duro e amável do cinema americano – Humphrey Bogart, e a quem é roubado o gesto repetido, profundamente cénico, cinéfilo e erótico.

Olhando, neste dia, para esta provocadora estratégia sem estratégia "americana" não posso deixar de recordar, repentinamente, de «Bonnie and Clyde» (Arthur Penn, 1967), de «Noivos Sangrentos» (Terrence Malick, 1973) ou de «Lua de Papel» (Peter Bogdanovich, 1973). Mas nada destes filmes tem a ver com a estética modernista de «À Bout de Souffle», com a beleza de cada plano, entrecortado filosoficamente com o diálogo mais simples e a reflexão parisiense mais profunda. A Nouvelle Vague começaria aqui mas só oito anos mais tarde Paris ficaria a ferro e fogo.

Claro que Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) é um ladrão de automóveis, desinibido e aventureiro, divertido e irresponsável, que não tem poiso nem morada, que se vê apanhado pelo amor da americana Patrícia Franchini (Jean Seberg), ela que, finalmente, o trairá para demonstrar a falsidade pura encerrada no próprio amor. Ao som do inesquecível concerto de Mozart.

A história é apenas essa. Simples, vinda de François Truffaut, sob os cromados de carros americanos e da batuta do jazz, do guarda-roupa modernista, perseguida por um polícia decrépito, quase sujo, e do seu acólito, e depois denunciada pelo próprio Jean-Luc Godard e pela própria Jean Seberg que corre para o quase cadáver e pergunta ao público:

«Qu’est-ce que c’est, dégueulasse?»

Hoje, quando o revejo, em cópia restaurada, apenas reconheço que é um dos filmes mais profundamente encantados da História do Cinema.


jef, abril 2024

«O Acossado» (À Bout de Souffle) de Jean-Luc Godard. Com Jean-Paul Belmondo (Michel Poiccard), Jean Seberg (Patrícia Franchini), Henri-Jacques Huet (Berruti), Jean-Pierre Melville (Parvulescu), Lilliane David (Lilliane), Daniel Boulanger (inspector), Claude Mansard (vendedor de carros usados), Van Doude (jornalista), Jean-Luc Godard (denunciante), Roger Hanin, Michel Fabre, André S. Labarthe, Jean Herman, Jean Douchet, Jean Domarchi. Argumento: Jean-Luc Godard, baseado numa história de François Truffaut. Produção: SNC / Georges de Beauregard. Fotografia: Raoul Coutard. Música: Martial Solal, Mozart. França, 1960, Preto/Branco, 90 min.

 

terça-feira, 2 de abril de 2024

Sobre o livro «Hotel Savoy» de Joseph Roth, Dom Quixote, 2024 (1924). Tradução de José Sousa Monteiro.


 









Um dos aspectos imprevistos na leitura é esse fio conductor, quantas vezes fantasioso, que a memória exibe quando confrontada com o silogismo comparativo de uma sequência de livros lidos.

O facto é que, por acaso ou sugestão literária, li «Hotel Savoy» de Joseph Roth logo a seguir a «Clarissa» de Erico Veríssimo. Enquanto Clarissa, treze anos, quase catorze, vai residir na pensão da tia Eufrasina para estudar em Porto Alegre, no Brasil, Gabriel Dan, judeu vienense, libertado de um campo onde esteve prisioneiro nos confins da Rússia, pelo fim da primeira guerra mundial, pretende regressar a casa e, em trânsito, reside no Hotel Savoy.

O livro do autor brasileiro é de 1933 enquanto o de Joseph Roth é de 1924. Ambos colocam todas as cores da sociedade, entre o vislumbre da esperança e o do desalento, dentro da campânula asséptica que é a estadia temporária num hotel. Daí tudo pode ser observado sem que essa observação nos devolva a sua crítica, tudo pode ser comentado porque o futuro virá mas já estaremos num lugar diverso.

Gabriel Dan vai descansar e verificar como os ricos vivem nos quartos dos pisos inferiores e os pobres e emigrantes mal se acomodam nos andares superiores, muitos dos quais empenhando as bagagens a Ignatz para ali poderem pernoitar. Existem greves e revolucionários, burgueses e magnates americanos que prometem mundos e fundos mas são descobertos a visitar locais longínquos no cemitério. São também encontrados uns triplos gémeos que procuram financiamento para trazerem para a cidade a produção de objectos de diversão. Existe ainda o bar da senhora Jetti Kupfer, onde os donos das fábricas brindam com raparigas nuas, mas a bela Stasia, que entra na Sala das Cinco da Tarde, não presta atenção a Gabriel, nem amor. No teatro Variedades há um número gratuito de sucesso: no centro está August, o burro de Santschin, que é animal inteligente e sensível. A toda a volta do Hotel existe um imenso bairro de lata com grevistas miseráveis prontos para a revolução.

Ainda há uma particular atenção às cores das luvas e ao modelo dos sapatos.

Uma escrita directa, poética, descritiva, sarcástica, alegre e triste ao mesmo tempo. Crónica do mundo real contada com toda a fantasia possível.

Como se Gabriel Dan visse tudo, sentisse tudo mas não se importasse com nada pois o mundo não se importa com ele. Como o anjo, vinha da guerra e só queria partir. Como um certo Hans Castorp, que ia para a guerra, colocado dentro de uma certa «Montanha Mágica» (Thomas Mann, 1924), calcorreando os corredores de «Shining» (Stanley Kubrick, 1980) ou os esconsos sem fim de «Twin Peaks» (David Lynch, 1992), atrás das horas perdidas do coelho de Alice.


jef, abril 2024

 

sexta-feira, 22 de março de 2024

Sobre o disco «Camera» de Knok Knok, Base Recordings 2024

 









O percurso de Knok Knok, esse modo musical empreendido por Armando Teixeira para se livrar das grilhetas das canções, é um caminho feliz. Um caminho agora partilhado com o percussionista Rui Rodrigues. E utilizo a palavra “felicidade” pois ela assume dois parâmetros essenciais que sustentam a fuga ao espartilho férreo da “cantiga”. Eficácia e Liberdade.

Eficácia, pois desde os temas do primeiro objecto produzido pela entidade «Knok Knok» (2017) e os do segundo, «Gravidade» (2021), a estrutura apresentada através das faixas do vinil “Camera” (também em digital) consolidam o propósito de ultrapassar o padrão melódico, rítmico, talvez de duração, imposto pelo formato cançonetista. Como se o modo Knok Knok desejasse abrir, uma a uma, as janelas de uma sala enclausurada e lhe apresentasse agora a luz solar num espaço amplo e livre.

Por isso, a palavra Liberdade. Esse desafogo atmosférico a aprofundar o lado jazzístico que sempre existiu mas, por vezes, surgia aprisionado nos dois primeiros objectos-cassete, ante o pendor rítmico da música eléctrónica, porventura um pouco mais dançável.

Como gosto de arrumar os discos não pela absurda ordem alfabética-abecedária mas pelo algoritmo da minha memória ou pela mnemónica das minhas músicas, colocaria «Camera» junto à prateleira onde guardo com carinho os discos editados pela etiqueta alemã ECM – Jan Garbarek, Jon Hassell, Terje Rypdal, Roscoe Mitchell, Nils Petter Molvaer… Perdoem-me a desorientação musical!

«Camera», uma espécie de jazz concertante, talvez mesmo a tender para o poema sinfónico. Os sete andamentos apresentam esse lado simbólico de evasão refractária onde as manobras dos sintetizadores modulares de Armando Teixeira esgrimem ou provocam as quase subliminares, embora majestáticas, arritmias da percussão e da bateria de Rui Rodrigues. Também as contundentes vibrações da guitarra acústica de Nuno Rebelo (“Black Monolith”) ou, pela abertura do lado B, a guitarra eléctrica de Tiago Castro / Acid Acid, descentrando um compasso quase militar, quase demente, na longa faixa “Escalator”.

Sem dúvida que o álbum investiga ainda uma declarada cinefilia, unindo os lados sonoro e visual do ecrã maior. A tentação de testemunhar os filmes no interior dos apelidos das faixas é um extraordinário complemento apresentado por «Camera».

No entanto, não seria tão evidente a ligação entre os lados sonoro e visual neste vinil, caso ele não estivesse coberto pelo design e pelas obras de arte primeiras de Paulo Romão Brás.

«Camera» de Knok Knok é um absoluto objecto de colecção.

Oiçam-no! Olhem-no! Agarrem-no!

(à venda na Flur, em Lisboa, ou através 

de Bandcamp - https://knokknok.bandcamp.com/)

 

jef, março 2024