quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Sobre o filme «A Bela de Dia» (Belle de Jour) de Luis Buñuel, 1967















Se existe um filme a que os cinéfilos chamam «iconográfico» é «Belle de Jour». Porque o próprio filme debate a palavra «ícone» como símbolo, sinal, índex ou objecto sacro.

Não falamos em Buñuel sem pensar neste filme, que ele próprio esteve para rejeitar mas que o veio salvar, reservando-lhe o maior sucesso comercial.

Não falamos em Catherine Deneuve sem pensar em Séverine, a sempre etérea, circulando entre os dedos dos seus clientes escolhidos; olhando a misteriosa caixa oriental; silenciando dentro do caixão sob o qual o duque se ajoelha; sacrificando o professor masoquista com o chicote; andando nua sem nunca o estar, sem desmanchar o seu cabelo, sem nunca macular a chama da diva.

Não falamos da cinematografia mundial sem perceber que o filme é uma obra de fractura e agitação. Tem contornos muito cativantes porque são belos, muito imprecisos porque são indefinidos ou inexplicados, tão sintomáticos que representam uma época em que a arte e a cultura europeia tinham mesmo que mudar. Contudo este filme é tudo menos «datado». Outro termo muito «cinéfilo»!

Não pensamos em Psicanálise no cinema sem referir Hitchcock, claro!, mas também sem falar de Buñuel, de «Belle de Jour» e dessa forma de nunca sabermos se a libido e as aparições narrativas são fruto da acção do casal, do desejo, do sonho, dos traumas de infância de Séverine, ou de algum outro intuito mais abstracto do realizador. Porque não explicará ele o som dos guizos, o horror aos gatos, a morte da personagem após o duelo oitocentista, a cura de uma cegueira virtual num total desrespeito pelo fim moral do filme? Porque terminará assim com os cavalos de novo a guiarem uma suposta carruagem para parte incerta?

E a estreia dessa belíssima e impoluta prostituta Séverine / Belle de Jour, não será a suprema crítica ao charme discreto da burguesia e a um sistema tradicional de valores assegurados, quando estávamos precisamente a um ano do Maio de 1968, em Paris?

Um filme quase «objecto sagrado»!

jef, outubro 2017


 «A Bela de Dia» (Belle de Jour) de Luis Buñuel. Com Catherine Deneuve, Jean Sorel, Michel Piccoli, Geneviève Page, Pierre Clémenti, Francisco Rabal, George Marchal, François Maistre, Françoise Fabian, Marie Latour, Francis Blanche, Macha Meril, Muni, Bernard Musson, Iska Khan, Dominique Dendrieux. Segundo o romance de Joseph Kessel. França / Itália, 1967, Cores, 101 min.

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