As imagens
em falta. Rithy Panh, Umberto Eco (e o 25 de Abril).
Umberto
Eco, através do seu encantador romance ilustrado «A Misteriosa Chama da Rainha
Loana» (Difel, 2005), explica o processo cinematográfico do filme de Rithy
Panh. O livro começa com uma pergunta simples feita pelo médico «E o senhor,
como se chama?». «Espere, tenho-o debaixo da língua.» (…) «Chamo-me Arthur
Gordon Pym». «O senhor não se chama assim.» contrapõe o médico. De modo
semelhante ao paciente-protagonista de Umberto Eco, que sofrera um AVC e tenta recuperar
a memória vasculhando um velho sótão atafulhado de objectos e imagens do passado
(impressas no livro), também o cineasta Rithy Panh busca uma imagem em falta.
Procura entender, demonstrar e reivindicar uma memória (uma História) que
desvanece com o passar dos anos, por não poder agarrar-se a qualquer
fotografia. Do mundo «Camboja / Phnom Penh / Khmer Vermelho / Pol Pot /
1975-1979», restam somente imagens que descrevem a gloriosa caminhada em
direcção a uma sociedade «sem vestígios de capitalismo». Todas as outras foram
destruídas. Da infância do realizador e dos campos de escravatura onde toda a
família morreu de exaustão e fome nada restou para mostrar. Até o nome próprio
lhes foi anulado. Ele a custo escapou e, mais tarde, fugiu para França. Então,
como fazer valer uma memória sem ter à mão um sótão cheio de recordações, sequer
um nome? Como reavaliar uma memória política através das recordações intangíveis
de menino? Rithy Panh, em golpe genial de climax dramático, recria uma
sequência de cenários onde, em lentos travellings, vai demonstrando essa
história / História através da contemplação de centenas, para não dizer
milhares, de figurinhas moldadas em barro (pelo escultor Sarith Mang). Um
maravilhoso teatro de marionetas estáticas, narrado em voz-off por Randal Douc,
que sem dúvida tem mais efeito do que milhares de imagens de arquivo. (Uma
sumptuosa teatralidade, máscara da «imagem real», que podemos acompanhar
igualmente em «Shoah» de Claude Lanzmann, 1985). Dir-se-ia que este teatro é
muito mais real do que a realidade, lançando na consciência actual a verdade de
uma família que se viu extirpada de um passado, recuperando um nome, a sua
História, a sua imagem.
O objecto
(e o teatro) é importante para a recuperação (compreensão) da História, e da
nossa história. Os historiadores sabem-no.
E nós, o
que poderemos fazer com todas as imagens (exteriores e interiores) que
possuímos do 25 de Abril de há quarenta anos? Poderemos, hoje, neste país, com
esta liberdade, com esta democracia, reinventar os quarenta anos que lhes
seguirão?
Todos
sabemos como a memória é leviana. De qualquer modo, se assim não fosse, não lhe
sobreviveríamos.
Viva o 25
de Abril!
jef, 19 de
abril de 2014
«A Imagem
que Falta» (L`Image Manquante) de Rithy Panh, 2013. Cambodja / França, 2013, Cores, 90
min.
«A Misteriosa Chama da Rainha Luana» de Umberto Eco, Difel 2005
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