Carlos
Queiroz parece ter vivido entre os dois números do «Orpheu», publicados em
1915, e os 54 números da «Presença», publicados entre 1927 e 1940.
Nasceu
em 1907. Morreu em 1949. Em Paris.
Carlos
Queiroz não escreveu muitos livros. Não encheu arcas. Foi poeta, ensaísta e
crítico literário e de arte. Estudou Fernando Pessoa.
As
edições Ática publicaram dois volumes reunindo a sua obra poética.
O
volume I (1984) contém «Desaparecido», de 1935, e «Breve Tratado da
Não-Versificação», de 1948.
Cinco
anos depois, o volume II recolhe poemas dispersos e organiza-os por categorias.
Categorias úteis apenas porque as páginas e os poemas devem aparecer por uma
ordem qualquer.
«Epístola
aos Vindouros» data do ano da sua morte e condensa toda a energia vital. Os
poemas que a antecedem representam também um mundo por definir, um mundo que
reúne mundos. Porém, todos os reverentes que transcendem mas não transgridem e
conciliam ideias e modos, não ficam na fortuita memória dos que correm pela
pueril digitalização do futuro.
David
Mourão-Ferreira diz no preâmbulo:
Se tivesse sido
publicado há quarenta anos, desde há muito decerto reconheceríamos que ele
tinha então representado uma das mais fascinantes cúpulas da poesia portuguesa
da primeira metade do século. Publicado agora, é como se tal cúpula magicamente
se tivesse deslocado no eixo do tempo a fim de mais amplamente fazer sentir a
perenidade da sua construção.
Eis o milagre: um livro
novo, perturbantemente novo, enriquecedoramente novo, e de uma novidade ainda
mais assombrosa pelo facto de já quarenta anos terem rodado sobre a morte do
seu autor.
Neste
livro, Carlos Queiroz é romântico mas modernista. É simbólico e construtivo. É
desafiador na nostalgia. Nostalgicamente futurista. É liricamente pessoano. É
mobilizador de uma dificílima ironia sarcástica, tão sub-reptícia quanto
ostentativa.
Isso
é mau? Quem o leia, o interprete, o integre, que o diga.
jef,
janeiro 2017
Anti-Soneto
O
nosso drama de portugueses,
O
nosso maior drama entre os maiores
Dos
dramas portugueses,
É
este apego hereditário à Forma:
Ao
modo de dizer, aos pontinhos nos ii,
Às
virgulas certas, às quadras perfeitas,
À
estilística, à estética, à bombástica,
À
chave de ouro do soneto vazio
–
Que põe molezas de escravatura
Por
dentro do que pensamos
Do
que sentimos
Do
que escrevemos
Do
que fazemos
Do
que mentimos.
No Fundo do Tejo
Fecho
os olhos e vejo
No
fundo do Tejo
Uma
coisa que oscila ao sabor da corrente;
Que
vai e vem, que deambula, rente
Às
pedras e conchas macias e frias,
Dias
e noites, noites e dias.
Uma
coisa que as águas desfazem sem nojo,
Levando-a
de rojo
No
fundo do Tejo;
Uma
coisa que eu vejo,
Uma
coisa que eu sinto e não sei o que é,
–
Tão longe de mim, tão fora de pé.
Uma
coisa que os peixes, passando em cardumes
(Coruscantes
e belos como lumes),
Ao
vê-la, com espanto, mudam de pista,
Como
os burgueses fazem ao Artista.
Uma
coisa que lembra outra coisa que eu vi,
Num
sonho que sonhei – mas que há muito esqueci:
Uma
coisa pequena e ao mesmo tempo imensa,
Na
sua vagabunda e singular presença.
Uma
coisa que anda de cá para lá,
De
lá para cá,
No
fundo do Tejo;
Sem
rumo, sem dono, sem nome, sem graça,
–
Inútil e triste, como a carcaça de um caranguejo.
Uma
coisa disforme, insensível, alheia,
–
Mas que escreve, sem querer, o meu nome na areia!
Da
‘Epístola aos Vindouros’
Ó
felizes vindouros:
Quando
a calma cristã dos vossos lares
Em
«taedium vitae» se transforme
E vos
inspire a nostalgia
Da
novidade e do tumulto,
Pensai
que nós, os filhos deste século,
Fomos
as vítimas inglórias
Da
infância das técnicas.
[…]
Pensai
que à doce Mística opusemos
A
acre e fria Dialéctica
E
varremos a nobre Metafísica
Com
a vassoura da Economia;
Que
na ânsia pueril de termos TUDO,
De
superarmos as limitações
Da
condição humana,
Reduzimos
as dúvidas pretéritas
–
Angustiosas mas fecundas –
À
certeza do NADA.
[…]
Pensai
que fomos nós os inventores
Das
lívidas colmeias sociais –
Higiénicas,
tristes, celulares
E
mais desertas d’almas que necrópoles;
Que
fizemos do verbo «organizar»
Um
instrumento para destruir
O
ócio, a graça, a liberdade,
A
solidão e o sonho.
E
que empalhámos em estatísticas
Todas
as formas vivas d’existência
Desde
o coito à poesia.
[…]
Assim
pensando em tudo isto
(E
no mais que vereis à transparência
Das
lágrimas contidas nestes versos),
Ó
felizes vindouros:
Quando
a calma cristã dos vossos lares
Em
«taedium vitae» se transforme
E
vos inspire a nostalgia
Desta
época atroz da infância das técnicas,
Orai por nós, orai por
nós, orai por nós!