Para ter a verdadeira noção
da gravidade do problema era necessário olhar bem de frente para os carris do
eléctrico quando chovia e, acima de tudo, quando os rodízios do transporte
colectivo lhes passavam por cima.
Chegava a ser ilícito a
velocidade cega, vibrante, sublinhada pelo guincho do metal contra metal, com que a vida, ou a vidinha, era contabilizada por aqueles regatos
encanados e paralelos à distância de uns quantos, poucos, centímetros.
Se o caminho fosse
teoricamente a direito, as paralelas ainda se uniriam no horizonte. Uma
questão interessante de perspectiva. Linhas de fuga ou de concentração do
olhar. Mas não, as ruas eram estreitas naquela carreira. O eléctrico era
obrigado a uma acentuada mudança de direcção junto à esquina dos prédios, ao
estendal da roupa, à gaiola do canário, à conversa da vizinha a entrar pela
janela do veículo na justa medida da citada perspectiva.
Pelo contrário, quando as rodas se
sobrepunham ao brilho dos carris, a distância regulamentar era mantida, incansável. Mesmo na subida mais íngreme.
Sem dizer água vai, ou água foi, sem dar tempo a tirar a roupa da chuva ou o canário da janela, o
guarda-freio pisava com insolente responsabilidade a campainha para fazer
afastar a miudagem da frente. Olhava os dois veios metálicos, riachos, onde a água
corria sem nunca se tocar. Caçava as memórias. Ou pescava todas as trutas,
adultas ou ainda alevins, que faziam pela vida, ou pela vidinha, subindo a colina do
castelo à força de guelra e barbatana, por entre os kispos coloridos dos
turistas.
O guarda-freio, de
seu nome Frederico Joaquim, que já esquecia carvalhais e granitos, mais apreciava
sardinha assada com batata cozida e salada de pimento ou carapauzinhos fritos com
açorda de alho, respectivamente. Não gostava do peixe do rio antigo, invariavelmente
sensaborão e com espinha a mais.
A cidade tinha outro
pendente, era de alvenaria. O calcário estava-lhe no sangue e tinha carris que,
observados bem de perto e quando chovia, eram quase paralelos.
Frederico Joaquim, o
guarda-freio, apesar de ser do rio, já era mais do mar. Como a cidade. Quando
olhada de longe, também ela era de marés. Corvinas e robalos confirmavam-lhe a
perspectiva e desafiavam o paralelismo dos carris.
Sem comentários:
Enviar um comentário