sexta-feira, 29 de julho de 2016

Sobre o filme «Jason Bourne» de Paul Greengrass, 2016















My name is Bourne, Jason Bourne (pelo menos até ver…)
Esqueçam Bond, James Bond e os últimos argumentos infantis, estafados, a roçar a indigência. Pelo menos o quinto filme de Bourne alinhava bem as pontas e faz esquecer os erros. Temos herói, de identidade trocada mas herói.
Temos alguma história a tocar temas que até parecem modernos.
Tudo o que gostaríamos de saber sobre a CIA mas temos vergonha em perguntar. 
Tudo o que gostaríamos de saber sobre a privacidade das redes sociais mas suspeitamos já ter a resposta.
Tudo o que gostaríamos de saber sobre a factura que o bate-chapas do automóvel nos vai apresentar mas nem queremos olhar.
Ainda, um Tommy Lee Jones muito mau; um Matt Damon muito bom e resistente a quedas e embaraços; um Vincent Cassel terrível e sanguinário; uma bournegirl Julia Stiles híper-activista mas que termina menos bem no reboliço de Atenas; uma bournegirl Alicia Vikander híper-séria que dá uma ajuda interesseira (ou talvez não) na muito iluminada Las Vegas. Um genérico final graficamente eficaz acompanhado por uma aparentemente moderna-retro canção de Moby.
No final, após uma conta calada de sucata e muitas balas pouco perdidas, socos e electrões por satélite, traições e contra-traições, vamos para casa encalorados e satisfeitos, a pensar no mundo e nas suas armas se Donald Trump tem a ousadia de ganhar em Novembro.

jef, maio 2016

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Flores e Rebuçados










Sebastião foi comprar rebuçados mas apenas encontrou flores pelo caminho. O facto não lhe agradou. Esperava ele uma nova solução poética para o comércio de guloseimas ou para o fundamental acto de andar. E o que ali ia vendo, bem rasteiro, junto às solas das botas eram as soluções estafadas do costume, habituadas a embelezar o olhar e a toldar a veracidade de um percurso que devia unir, o que não era tarefa pouca, o ponto A ao ponto B, mesmo que A fosse a casa dos avós e B a loja do Sr. Albano, fazendas e mercearias.

Desde que nascera, Sebastião não se contentava com a realidade que, de tão usual, desaparecia na paisagem quente daquela tarde e, por inexpressividade, deixava de ser olhada, pensada e, por isso, desaparecia igualmente do mundo. Habituara-se a exigir um pouco mais de cada situação, e a compra de rebuçados ao Sr. Albano parecia-lhe assunto bem importante para ser somente acompanhado por aquele tapete de flores imóveis que esmaeciam na força do calor.

Mas aí Sebastião entendeu. Afinal, um rebuçado, aquele objecto ou conjunto de objectos que se situariam no ponto B, a loja do Sr. Albano, fazendas e mercearias, seria coisa bem mais volátil ou derretível, como os sonhos que, com o calor ou a emoção onírica, fazem suar e humedecer os lençóis do paciente. Enquanto as flores a resistir à tarde seca e ao ranger dolente dos élitros dos insectos, eram agora, no ponto AA’, a deslocar-se continuamente sobre a linha dos seus passos desde a casa dos avós, o objecto mais perene que o seu olhar, cada vez mais atento, podia reter. As flores, um objecto que ficaria cravado, menos volátil ou derretível, na película perene do seu córtex imaculado de criança.

Nessa altura, Sebastião inverteu a marcha. Guardou as moedas no bolso e colheu dois malmequeres, uma papoila, um dente-de-leão, dois coelhinhos, duas azedas, três espigas de espécies diversas. E voltou ao ponto inicial A, a casa dos avós, um pouco mais satisfeito. Encontrara o fundamento poético para a constância dos passos que, em tempo, faziam dar um piparote certeiro numa pedra ou noutra com a biqueira da bota.


jef, julho 2016

terça-feira, 26 de julho de 2016

Sobre os livros «O Meteorologista» e «Sibéria» de Olivier Rolin, Sextante 2015 / Tinta da China, 2016.















Com Olivier Rolin o leitor aprende a orientar-se olhando o planisfério. (Obriga-o a olhar o Espaço e o Tempo em simultâneo.) Entende por que os cursos de História e de Geografia sempre andaram ligados. Por que os livros de História são ilustrados por tantos mapas coloridos. Percebe que a memória, tal como sugere Gonçalo M. Tavares, resolve tanto a distância a que se encontra alguém ausente como o passado que ainda está por resolver.
Com Olivier Rolin, percebe que a ficção, a melhor ficção, enterra os pés, como raízes, no sentido geográfico e emocional da realidade.
«As histórias não caem do céu nem das nuvens, não me parece mal que apresentem credenciais.»
O autor viaja muito e a paisagem é um dos seus portos de abrigo. Talvez o principal. Ele lê muito. A literatura fá-lo concretizar a paisagem que lhe interpreta a linguagem.
Sibéria.
«“Campo”, naturalmente, é uma palavra despropositada. A Sibéria, campo?... Como já disse a respeito de Irkutsk, há palavras francesas que significam coisas, paisagens francesas, nada adequadas às coisas ou paisagens russas. A Sibéria não é “província” nem “campo”, é um continente. Talvez a palavra “solidão” fosse melhor, no seu sentido antigo e latino de “local deserto”. Vastae solitudines
Então o vasto continente é mais de Tchékhov do que de Cendrars.
Olivier Rolin ensina-nos a interpretar a solidão. A nossa solidão.
O autor também ensina a perversidade de comparar-se os pesadelos da História. Comparar Auschwitz, na Polónia, com Kolimá, na Sibéria, é relativizar sofrimentos, e o sofrimento pertence a cada corpo, a cada alma, na sua individualidade única. Mesmo assim, a comparação é válida por trazer ao (re)conhecimento o Gulag, bem menos «famoso» que os campos nazis.
Olivier Rolin faz-nos viajar ao mar Branco, até às ilhas Solovki, fim do trajecto de Alexei Feodossievitch Vangengheim. Entusiasta meteorologista, entusiasta da realidade soviética, director do serviço Hidrometeorológico da URSS, para ali transferido em 1934. Mais tarde, integrado na memória fotográfica patente em postes enterrados na neve. «Floresta dos Fuzilados».
«O Meteorologista» termina com o mais comovente álbum ilustrado que o protagonista foi enviando à sua filha, Eleonora. (Herbário Aritmético e Geométrico, Bagas, Animais, Adivinhas, As Plantas e o Clima, Cartas).

Olivier Rolin, um dos mais importantes escritores contemporâneos da paisagem e da consciência.

jef, julho 2016

sábado, 23 de julho de 2016

Sobre o livro «Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato» de Ana Margarida de Carvalho, Teorema 2016.

Ana Margarida de Carvalho atira-nos à tormenta. Entre o céu dos pardais e o mar dos naufrágios somos navegados através da metáfora. A Nave dos Loucos, Robinson Crusoé, Dois Anos de Férias, A Ilha do Tesouro, O Deus das Moscas, Gulliver, Ulisses… A viagem eterna, ou seja, a viagem sem retorno.
A solidão de uma praia é o mais apetecível ponto de chegada mas, igualmente, o mais intransigente local para partir. Aqui, Alexandre O’Neill, José Mário Branco, Caetano Veloso, Dostoievsky, Marisa Monte, Paulo Varela Gomes…
Que não se espere a benevolência de uma natureza revoltada, de um Deus inclemente, do passado inconformado. 
Assim sempre será!
«A inferior condição do ser humano quando a única força de que dispõe é a de ter muita fome.»
«Talvez deixar-se dormir, e ir-se assim, embalado num barco tempestuoso e bêbado que é o próprio corpo.»
«O caos é uma das ordens de Deus, porventura, a lei por ele mais praticada.»
«Os deuses não nutrem pingo de interesse pela condição humana e percebem tão pouco de religião.»
Mas devemos continuar. Sempre. O regresso está vedado.
Pela imolação do anho ao sagrado, e são tantas as criaturas inocentes sacrificadas, a escritora dá largas à veia de narrar o passado dos passageiros naquela praia de acolhimento infernal até os vir colocar num presente eternamente inconclusivo e amoral, cravado nas viagens clandestinas de escravos após a abolição da tal lei. 
África, Brasil, Portugal.
Como se Ana Margarida de Carvalho nos avisasse. Como se ouvíssemos dizer que a viagem é perigosa, que a literatura é um lugar estranho, muito mais implacável do que a morte, bem mais compreensivo do que a sobrevivência.

jef, julho 2016

terça-feira, 5 de julho de 2016

terra











Vá. Mete as mãos debaixo da terra e procura. Não sejas preguiçoso. Não adies. Tu sabes, tu queres, mas evitas arregaçar as mangas e sujar as unhas. Pareces ter consciência do que é gastar a última energia sem teres a certeza de, com ela, encontrar o que pretendes e, nesse caso, esvaíres-te, ficares exangue, exausto, inerte e, acima de tudo, de mãos vazias. Vá. Vamos lá. Não temas os dedos feridos, não te preocupes em partir as unhas. Elas de nada servirão se não gastares a última energia que te resta. Mesmo se, por debaixo da terra, apenas terra exista. A terra poderá ser vã, a procura não.

jef, julho 2016