O som vazio ou o modo de acreditar.
A chama genial de Tarkovksy está no modo em como concretiza
uma ideia, por mais abstracta que seja. Tarkovsky é o idealista da
estética. Experimente ouvir «Stalker» de olhos fechados. Concentre-se no som- música que acompanha, por exemplo, a viagem dos três personagens pela linha férrea até chegarem à
Zona. Sobreponha os «retratos» que acompanham tal banda sonora. Estará pronto
para ultrapassar a fronteira da Esperança. Tal como Pamina e Tamino devem
passar pelo Calvário de provações e privações, proposto por Sarrastro, para chegarem
à consciência da felicidade, também Stalker quer levar o Escritor e o Professor
até à Zona para um certo exame do passado e do presente, devolvendo-lhes a
difícil e abstracta ideia de Acreditar. Stalker, o tolo, move-se por gratuito desejo
de dar, ou seja, move-se por Fé. Porque a Esperança (ou o Desejo de Futuro) é
essa ideia abstracta mas imprescindível criada pela humanidade. Que o diga quem se
recolhe em oração na penumbra religiosa de uma catacumba ou de uma catedral;
quem resistiu e saiu vivo de Auschwitz-Birkenau, em Janeiro de 1945; quem
sobreviveu à tortura e não revelou os nomes dos camaradas; quem ama e se
entrega devoto ao corpo amado num desejo ideal de Futuro…
Todas são abstracções. Abstracções fundamentais. A Esperança
é um dos fundamentos do homem.
Mas Stalker não consegue levar os outros até lá:
«O órgão da Esperança deles está avariado.», chora ele. E é a sua mulher que o
redime (e nos redime) numa das cenas mais belas do cinema de todos os tempos. Diz
ela lavada em lágrimas e virada para o espectador: «Prefiro uma vida amargurada
a uma vida vazia.»
Se escutarmos o carinho com que Andrei Tarkovsky envolve o som dos passos nos seus filmes talvez compreendamos que o nosso dever de Acreditar pode ser gratuito
mas não é certamente em vão.
jef, fevereiro 2016