terça-feira, 24 de março de 2015

A realidade existe. Parte III [Presente do Indicativo]















Por vezes, gosto de pensar que só existe o Presente do Indicativo. Imagino um País com uma língua única cujos verbos se conjugam, invariavelmente, no dia presente. O povo troglodita que utiliza tal linguagem vive nas cavernas desse País e tem a mania de falar do passado sempre no momento indicativo. Quando planeia o futuro, em agendas e calendários, organiza-o sempre no acto contemporâneo.

«Não olho mais para jornais. Não dizem nada que não deva ser dito e sempre na ordem pela qual os mandam dizer. Dizer por dizer, o infinitivo é perfeito para a gentalha que lhes paga! Além disso, a crise obscurece qualquer sinal de alegria. Não só a crise, raios!, principalmente a imagem que dela publicitam! A imagem que agitam à frente do olhar escravo dos miúdos que devem partir, dos velhos que devem morrer, das crianças que não devem chegar, dos cancerosos que não devem tanto despender. O horror do emprego incerto é o maior incentivo para a criatividade, repetem! Mais vale uma migalha na minha mão, muito mais do que as mil na mão do patrão. E que guarde bem as dele pois é daí que sai a minha! O temor do perigo é tão bom para o povo como o de Deus, de Dom Sebastião encoberto, de Salazar poupado, de Cavaco armilar, do Fado sempre a nascer. Como cogumelos! Ai os transtornos da República que não nos deixam sossegados.»

«Não me diga que a Caparica, este ano, não está magnífica! As ondas estão grandes mas suaves, os mergulhos francos, a areia farta, quente mas sem escaldar. Imagine só: duas filas de barracas e três de toldos! Um areal dos diabos! O creme nivea nas costas das crianças que vão já a correr para o mar com os colchões repimpa. As bolas de berlim, fresquíssimas, as batatas fritas nos pacotes de papel vegetal, maravilhosas. Apenas os robertos estão, hoje, um pouco esganiçados e nem conseguem levar a melhor sob as traulitadas que dão na garupa do touro. Por que falam eles um espanhol tão esquisito? Então logo, sempre estamos combinados para ir às cadelinhas e depois à sardinhada?»

«A sonda Hergé chega a Marte e entra em prospecção. Descobre água no sub-sub-sub-solo silicioso. A notícia espalha-se, as águas agitam-se, os mercados enervam-se. A equipa servo-turco-croata ganha batalha judicial contra a holding israelo-palestiana, após lançar OPA hostil sobre o sistema integrado Apolo-Laika, em falência técnica mas sem passivos tóxicos. O exército especial chega para proteger as diversas equipas que actuam já no local. Os mais perigosos são os bandos de piratas que exigem dividendos, por sequestro. Recusam pagar os direitos geográficos impostos pela Conferência de Sião. Neste momento, grupos violentos “sem-rosto” ameaçam a região: terroristas-hooligans e católicos-fundamentalistas. Pretendem apenas dólares, pretendem apenas diversão abstracta. Os países reúnem-se outra vez e não chegam a qualquer conclusão. Sem esperança, aguardam directivas da Super-Nação.»

«Levam todo o santo dia-a-dia a dizer lengalengas. Repetem pela alvorada e ao crepúsculo da tarde: “Temos sempre Tebas Damasco Dresden Tarquínia Hiroxima Bagdad Paris Texas Babilónia Xangai Baku Tróia Moçâmedes Guernica Corinto Novosibirsk Constantinopla Lourenço Marques Bombaim Samarcanda Teerão Marienbad Jerusalém Odessa Berlim Cisjordânia Roma México Lisboa Theresienstadt Alexandria Suméria Nuremberga São Paulo Tóquio […]!”»

Os trogloditas do Presente crêem ser o Indicativo o ápice da Verdade! Os tolos! Soubessem eles usar o gerúndio…


jef, março 2015

Sem comentários:

Enviar um comentário