sexta-feira, 13 de março de 2015

A realidade existe. Parte II [os andaimes de Fernand Léger]















 

 
[Diz Fernand Léger: «Uma nuvem, uma máquina, uma árvore, são elementos que apresentam tanto interesse quanto as personagens.»]
 
Quem escreve (ou diz) saberá exactamente a massa volúmica de cada palavra, o peso específico de cada um dos seus significados?
Como eu gostava de saber se as palavras poderão formar, sintagma a sintagma e período a período, discursos bem definidos, digamos, muito simples, vejamos, visuais. Sem vírgulas ou advérbios a destruírem o peso volúmico ou a verticalidade da linha.

Gostava tanto de saber se é possível medir a realidade da palavra quando dita (ou escrita) de olhos abertos e braços levantados ou, silenciosamente, bem de perto da volta de uma orelha.
 
Serão os parágrafos que encontramos dentro de uma frase longa traduzíveis por plantas e alçados, planos, cartas, mapas ou talvez rascunhos, caso a ideia ainda não esteja formada, caso a ideia esteja em pré-palavra?
 
Alguém me dirá se a realidade da palavra, em português, na velhíssima ortografia, pode ser definida pelas linhas grossas, a duas dimensões, egípcias, das telas de Fernand Léger?

Ou se a frase, com estrutura própria, deixará que a revertam em laje, viga, betão armado, aço, cimento, cofragem, na dimensão pura, na característica verdadeira, como se fosse a ideia do pintor?

Andaimes que garantem, pilares que suportam, operários que içam a cabo, roldana e braço. A hipótese de um parágrafo e, com tal puxada, discutir o ponto de aplicação do discurso. Um discurso que dispensa parágrafos. Alavanca.

Sim, como se as frases de um discurso fossem feitas não de parágrafos, que pouca coisa são, apenas tinta escura em papel claro, mas de cores primárias, únicas, distintas, determinadas pela força da gravidade que é multiplicada pela citada massa. Na Terra, 9.8 é a substância certa de cada uma das palavras. Atracção das massas.
 
E se as letras de um poema estivessem inscritas nas cores de Fernand Léger? Caso tivessem dado a Mondrian um ponteiro e um baraço, ele desenharia a circunferência imperfeita. Como se os olhos de Miró segurassem o esquadro e o nível e, através destes, admitissem a recta gravidade. Como eu gostava de conhecer as cores das palavras primárias! [Presunção: as palavras contidas nas cores primárias são perpendiculares entre si.]
 
Como gostava que os que escrevem (os que dizem) colocassem o contrapeso bem medido no equilíbrio da palavra, reviravolta de ferro aço dentro da viga, cimento acomodado na cofragem. Editando a declaração.

Como eu gostava que as declarações fossem cimento. As palavras, tijolos. As vírgulas, fio-de-prumo. O nível-de-bolha, pensamento. Tudo o resto, o ar, a água, a temperatura, as circunstâncias do nada, ou seja, da vida, ou seja, de tudo.

Eu gostava muito que os poemas fossem de sílica, calcário, gesso, quando contactam com as circunstâncias. Cimento endurecido. Não para serem invencíveis, indestrutíveis, irremediáveis. Não. Apenas para o serem desse modo, e desse modo mudarem, transformando as circunstâncias de que são devedores.
 
[Porque o cimento muda as condições em que é trabalhado.]

As palavras, os tijolos e as suas condições, unidos pelo ar, a água, a temperatura, a pressão atmosférica. Tudo faz parte da declaração do poema. O cimento que une os tijolos, as palavras.
 
As palavras são, deste modo, as condições necessárias para quem escreve escrever, para quem diz dizer. Mudando as condições, alteram-se as circunstâncias do cimento, fazendo-as vencíveis, destrutíveis, remediáveis. Adaptáveis às exigências do tempo em mudança. Por isso mesmo, cimento eterno.

Porque as palavras, tal como os castelos construídos com areia na linha da maré, ora baixa ora preia-mar, são prontamente destruídas, ficando apenas a ideia do que eram. A ideia, talvez sílica, calcário, gesso ou areia. Argamassa de cimento com areia e água e calor. E por vezes, armada de aço para que as placas, os pilares, as vigas não cedam às marés. Mas a ideias também elas são destruídas pelo salitre que é alimentado pelo mar. Como o cimento (e o ferro das janelas), se forem esquecidas as circunstâncias e não aplicarem um primário protector como base…
 
Quem me dera que as ideias pudessem ser apenas ar, água e calor. Mas as ideias são como o cimento endurecido que, por mais indestrutível que seja, está sempre pronto a ser derrubado e de novo reconstruído. A ideia é também, por objectivo e consequência, palavra reciclada. Recurso infinito, por princípio. [Aí difere do cimento.]
 
Será então possível avaliar com correcção, em tabela da resistência dos materiais, milimetricamente, a realidade da ideia quando é dita (escrita) de olhos bem abertos, de braços levantados, sob a cor primária de uma bandeira? Ou, quando é escrita (ou dita) ao de leve, de mansinho, roçando silenciosa o lóbulo de uma orelha?

Serão as palavras «clamor» ou «sussurro» de betão armado, iguais aos castelos no ar, fenómenos meteorológicos, fabricados pelas nuvens que o vento modifica a cada sopro? Mas, apesar das circunstâncias volantes, tais castelos, palavras (e ideias) não continuarão a ser objectos absolutamente reais?
 
Não estaremos, assim, perante a realidade de que são feitos os andaimes de Fernand Léger?
 
jef, março 2015

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